A mudança de nome da Apple Computer para Apple apenas, em 9 de janeiro, chama a atenção para a nova realidade da empresa: a estratégia do CEO Steve Jobs privilegia agora a convergência entre aparelhos eletroeletrônicos muito mais do que os computadores pessoais.
O fato é que as mais recentes declarações da Apple apontam para uma empresa de eletroeletrônicos mais do que de computadores. No mesmo dia em que a companhia anunciou a mudança de nome foi lançado o iPhone, um híbrido de celular e iPod, e também a TV Apple, um aparelho para reprodução de vídeos baixados através do serviço de iTunes para o aparelho de TV do consumidor. Em 17 de janeiro, a Apple declarou ter vendido 21 milhões de iPods no primeiro trimestre fiscal encerrado em 30 de dezembro. O iPod e o iTunes representaram para a empresa 4 bilhões de dólares de um total de 7,1 bilhões em receitas no mesmo trimestre. As vendas dos computadores da empresa, por outro lado, foram responsáveis por 2,4 bilhões em receitas. A Apple fabricou 1,6 milhão de Macs no trimestre, ao passo que alguns analistas de Wall Street esperavam que a empresa fabricasse pelo menos 1,75 milhão de computadores.
Especialistas da Wharton observam que o novo nome da Apple torna oficial uma estratégia de negócios já em andamento desde que o iPod foi lançado em 2001: criar aparelhos que estejam no centro da sala de estar digital, onde o conteúdo audiovisual estará disponível mediante solicitação e poderá circular em rede por intermédio de diversos aparelhos. Mas assim como na indústria de computadores pessoais, a Apple tem pela frente uma concorrência acirrada. Na mesma semana em que a empresa lançava seu iPhone, a Microsoft — que também tem projetos para o chamado lar digital — apresentou o Home Server [servidor doméstico], um dispositivo que dará suporte ao conteúdo digital em toda a casa. A Apple tem ainda outros concorrentes, como a Sony, que há anos trabalha no segmento de aparelhos eletrônicos para a sala de estar.
A Apple terá de trilhar um caminho delicado em sua tentativa de atrelar o consumidor à sua plataforma, e com isso impulsionar seus lucros. Ao mesmo tempo, precisa se assegurar de que seus produtos funcionem perfeitamente quando acoplados a outros aparelhos eletrônicos.
Sarah Kaplan, professora de Administração da Wharton, diz que a mudança de nome não tem efeito direto algum sobre o negócio da empresa, mas consegue deixar claro a seus empregados que a companhia tem uma estratégia de longo prazo, torna explícita sua mensagem de marketing e estimula os investidores a compararem a Apple a empresas de eletroeletrônicos, e não apenas às fabricantes de computadores. Além disso, diz Kaplan, “o segmento de eletroeletrônicos sempre valorizou o design do produto, e nisso a Apple é forte”.
Contudo, para Peter Fader, professor de Marketing da Wharton, a mudança do nome da Apple equivale a um aceno de bandeira branca no mercado de PCs. “Quantos computadores da Apple o iPod vendeu?”, indaga Fader em alusão ao chamado “efeito de aura” — isto é, o consumidor que adquire um iPod tenderia também a migrar para os computadores da Apple. “A verdade é que a Apple continua a ser um personagem secundário na indústria de PCs. A mudança de nome é o reconhecimento de que a empresa perdeu esse mercado.”
Outros dizem que a estratégia de convergência da Apple está abrindo uma nova via de crescimento dada a crescente comoditização do mercado de PCs. Eric Clemons, professor de Gestão de Operações e Informações da Wharton, diz que a convergência entre o PC, os equipamentos de entretenimento doméstico e os aparelhos sem fio mostra que gadgets da Apple como o iPhone e o iPod ganharão importância cada vez maior. “A Apple leva ao mercado diversas coisas: hardwares atraentes, softwares de primeira e uma imagem ‘descolada’”, diz Clemons. A empresa, acrescenta, “quer integrar um sistema de entretenimento pessoal [o iPod] e uma loja de música pessoal online [iTunes] a aparelhos de som e de vídeo de caráter mais familiar e doméstico”.
Se a Apple for bem-sucedida — Peter Oppenheimer, diretor financeiro da empresa, ressaltou em 17 de janeiro que o iPod controlava 72% do mercado de tocadores digitais de música no final de dezembro —, poderá vencer a queda de braço com a Microsoft. “À medida que a convergência entre o PC e os eletroeletrônicos avança, o processo torna-se mais complexo”, diz Kaplan. “Não se sabe ao certo se a Microsoft conseguirá dominar o setor. Se a Apple vencer a batalha pela convergência, mesmo que tenha perdido a disputa pelo mercado de PCs, terá a vitória final.”
Gente antiga e gente nova
De acordo com Fader, ainda é cedo ainda para prever se a Apple dará a última palavra. Afinal de contas, convergência digital é uma área nova para a empresa. A Microsoft é um inimigo já conhecido e briga com a Apple no segmento de sistemas operacionais, tocadores de música e centros digitais de entretenimento. Outros concorrentes, porém, serão desafiados pela primeira vez. Com o lançamento do iPhone, por exemplo, a Apple entra na seara da Motorola, Samsung, Nokia e Research in Motion, só para citar alguns. Além disso, a Apple não conta com um amplo segmento de negócios para desafiar uma empresa como a Sony em todos os frontes. “A Apple não é a Sony”, diz Fader. “Steve Jobs está investindo pesadamente em alguns nichos específicos.”
A Apple pode também criar problemas para si mesma com o conceito de convergência por trás do iPhone, que pode roubar vendas do iPod e ainda assim não ser capaz de concorrer com o Blackberry, da Research in Motion, e o Treo, da Palm, diz Fader, acrescentando que “no caso dos celulares, a funcionalidade é mais importante do que o design”.
Fader diz também que a TV da Apple não é nenhuma maravilha. Não se sabe, por exemplo, se o consumidor quer realmente passar para o aparelho de TV os vídeos baixados da Internet, ou se a qualidade da imagem será adequada à tela grande. “Se você me perguntasse cinco anos atrás se a sala de estar digital seria uma realidade em 2007, eu diria que sim”, observa Fader. “Agora, ninguém sabe se o mercado quer mesmo a convergência. O consumidor parece disposto a deixar a TV ligada enquanto navega pelo laptop no sofá.”
Já Clemons não é tão pessimista, prevendo que a Apple pode perfeitamente enfrentar rivais como a Sony. Para ele, a Apple leva vantagem sobre a Sony em diversas áreas importantes. “A Sony parece estar perdida. A empresa tem uma capacidade tecnológica extraordinária, mas não surpreende mais ninguém. Os fones de ouvido brancos e diminutos da companhia japonesa [usados no iPod] ficaram conhecidos popularmente como ‘por favor, me roube’ pelo fato de estarem quase sempre conectados a um iPod caro. Faz muito tempo que a Sony não tem a mesma visibilidade da Apple.” Além disso, é difícil dizer se a estratégia da Sony de controlar a sala de estar digital com o PlayStation 3 funcionará. “O fator de integração [entre PC e eletroeletrônicos] será obra de um computador ou de um celular, não de uma TV ou de um console de jogos. A Sony não tem presença em nenhum dos segmentos. A Apple tem em ambos.”
Kendall Whitehouse, diretor sênior de tecnologia da informação da Wharton, acrescenta que a Microsoft continua a ser uma rival de peso. Embora o tocador Zune não tenha estreado com o mesmo entusiasmo com que a crítica recebeu o iPod, a Microsoft tem os recursos necessários para continuar a desenvolver o produto. Além disso, o Xbox, console de jogos da empresa, também pode fazer o papel de centro difusor de mídia, enviando vídeos de PCs dotados de centros de edição de mídia para o televisor de tela grande do consumidor.
Enquanto isso, acrescenta Kaplan, é cada vez mais difícil classificar os segmentos disputados pela Apple. A exemplo da Microsoft, também no caso da Apple os segmentos disputados terão de ser elencados por linha de produto, e a empresa pode acabar concorrendo em nichos diversos. “A Apple tornou-se muito mais diversificada, portanto não se pode compará-la com outras empresas pura e simplesmente. Deve-se tomar como referência sua linha de produtos”, diz Kaplan. “O iPhone, por exemplo, concorre com a Motorola e com a Nokia; o concorrente no segmento de PCs é a Dell. Assim como a General Electric, deve-se desmembrar a empresa por linha de produtos, já que são bastante distintos.”
Ativos da Apple
Nesse novo cenário competitivo, especialistas da Wharton concordam com a tese de que a Apple dispõe de um conjunto de ativos extremamente importantes para derrotar seus inimigos. Sua principal vantagem é a perícia demonstrada em seus designs. A empresa possui também um olhar apurado que lhe permite produzir uma tecnologia complexa — como, por exemplo, o software de gestão de direitos digitais, que restringe a forma como o conteúdo é apresentado e compartilhado —, mas que pode ser facilmente utilizada pelo consumidor.
O design, porém, vai além do desenvolvimento de aparelhos arrojados, observa Betsey Stevenson, professora de Negócios e de Políticas Públicas da Wharton, que estudou a forma pela qual o consumidor acolhe novas tecnologias. Segundo Stevenson, tecnologias que não oferecem dificuldades ao consumidor aceleram a aceitação de tecnologias avançadas. “Basta lembrar como as pessoas reagiram quando apareceram os primeiros caixas automáticos”, diz ela. “Foi uma mudança tecnológica complicada para muita gente na época, mas hoje é até banal.”
A sala de estar digital ainda tem pela frente uma série de nós. Contudo, muitos deles — como os dispositivos múltiplos de entretenimento em rede — podem ser superados com um bom design. Stevenson diz que o consumidor constrói seu conhecimento tecnológico a cada novo aparelho que surge. O caixa eletrônico, por exemplo, abriu caminho para o consumidor e lhe proporcionou informações que lhe permitiram, mais tarde, utilizar pontos automáticos de venda de passagens aéreas, entre outras coisas. Contudo, um design bem formulado pode acelerar de forma surpreendente os índices de adoção, uma vez que o consumidor “não precisa de nenhum estoque prévio de conhecimentos tecnológicos para chegar à conclusão de que o produto é fácil de usar”, diz Stevenson.
Dada a importância do design, a Apple talvez tenha boas chances de se tornar líder em tecnologia da sala de estar digital. Clemons diz que o talento para o design da empresa não se esgota na criação de novos aparelhos inventivos, estendendo-se também à criação de designs para software. Uma das grandes façanhas da Apple no campo do design foi facilitar a compra legalizada de música pelo consumidor sem sobrecarregá-lo com um software pesado de gestão de direitos digitais (DRM, na sigla em inglês). “O iPod da Apple e sua loja, a iTunes, são rigorosamente controladas, de modo que o roubo de conteúdo, ou sua transferência ilícita, é algo bastante complicado”, diz Clemons. “É muito fácil para o consumidor se esquecer da razão pela qual as restrições existem, e de onde vêm.”
Além da vantagem da Apple no campo do design com iPods para todos os gostos e novos aparelhos modernos com a TV da Apple e o iPhone, a empresa tem também um ativo que muitas vezes é subestimado — uma base de clientes fiéis, diz Kaplan. No setor de eletroeletrônicos, acrescenta, a chave do sucesso consiste em aperfeiçoar rapidamente um produto, e esse desenvolvimento acelerado não ocorre com facilidade quando a empresa não sabe de onde vai tirar um milhão de clientes. A Apple não tem essa preocupação: é quase certo que o primeiro milhão de unidades de qualquer produto novo da empresa será devorado por fãs obcecados.
Essa base de fidelidade proporciona a Apple uma curva de aprendizagem rápida que poucas empresas conseguem acompanhar. O iPhone, por exemplo, deve estrear em junho em meio a uma demanda elevada pelo produto. Essa demanda permitirá a Apple colher feedback do usuário e aperfeiçoar rapidamente o produto. Em última análise, tal processo deve culminar com a adoção em massa do aparelho. “Existe um grupo de indivíduos obstinados dispostos a comprar qualquer coisa feita pela Apple”, diz Kaplan. “Com um milhão de clientes, a curva de aprendizagem é percorrida num instante. O produto incorpora então as características preferidas do cliente, e qualquer um pode operá-lo.”
O jogo da integração vertical
Mas o que poderia dar errado? Especialistas da Wharton dizem que o cliente pode acabar se irritando com as tentativas da Apple de integrar verticalmente seus produtos — e, com isso, amarrar o cliente à sua plataforma —, em vez de trabalhar com aparelhos de outras marcas. A integração vertical consiste na tentativa de controlar diferentes partes de uma cadeia de produtos. A Apple, por exemplo, tem o seu canal de vendas de música, o iTunes; ela controla o software de gestão de direitos digitais e vende os dispositivos que permitem tocar o conteúdo. A Microsoft segue uma trajetória semelhante com o Zune e outros produtos conectados à plataforma Windows.
Contudo, ninguém sabe se essa estratégia vertical sairá vencedora no final, já que o consumidor poderá requerer suporte para padrões diversos. Do jeito que as coisas estão hoje — a Apple com seu software de gestão de direitos digitais, e a Microsoft com seu DRM próprio — não há compatibilidade possível. Isto significa que as bibliotecas das duas plataformas não podem ser compartilhadas facilmente. “Enquanto a Microsoft e a Apple tiverem sistemas de gestão de direitos digitais distintos, as transferências de um dispositivo para o outro poderão apresentar problemas”, diz Clemons.
Whitehouse diz que a tensão entre estratégias de integração tecnológica (exemplificada pelo rolo compressor da Apple formado pelo iPod/iTunes e a plataforma Windows da Microsoft) e produtos eletroeletrônicos dotados de dispositivos plug and play continuará a existir durante algum tempo. As declarações recentes da Apple, observa, reconhecem a tensão entre múltipla funcionalidade e a tentativa de amarrar o cliente em uma plataforma.
Whitehouse cita o discurso de Jobs durante a Macworld, em 9 de janeiro, ocasião em que anunciou os planos para a TV Apple: “A TV Apple será uma forma de desfrutar de sua mídia digital na tela grande da TV. A iTunes tem excelentes conteúdos à venda. Agora, você pode comprar uma TV widescreen, conectá-la à TV Apple e fazer a transferência de conteúdo sem fio. É muito simples.” O discurso de Jobs foi revelador, diz Whitehouse, porque ficou na tênue fronteira entre o laudatório — quando mencionou o número de saídas da TV Apple, que é o que importa para os aficionados por tecnologia — e o prático, quando disse que o aparelho é fácil de usar — que é o grande atrativo para o público em geral.
A Apple parece estar seguindo uma estratégia de integração vertical, acrescenta Whitehouse, salientando que a empresa tem enfatizado o papel do iTunes como centro exclusivo de conteúdo digital; no entanto, o sistema da empresa funciona tanto no Mac quando no Windows. “Uma vez que a Apple tem uma fatia menor no mercado de sistemas operacionais, ela tinha de pensar em trabalhar com outros sistemas. O iTunes e o iPod, por exemplo, rodam tanto no Windows quando no Mac.”
Entretanto, como ressalta Fader, a Apple não deu o passo seguinte, que seria abrir o iTunes para inúmeros formatos diferentes de DRMs. Fader diz que a empresa tomou algumas medidas no tocante à abertura do seu software a outras plataformas, porque sua intenção é amarrar o cliente ao iTunes. “O iTunes e o iPod são uma contradição. A Apple abriu ambos ao Windows, por que então não dá o passo seguinte?”, indaga.
De acordo com Kaplan, esse tipo de questão — guerras de plataformas, tentativas de integração vertical e tocadores variados — ocorre com freqüência em mercados imaturos. Qualquer aparelho de TV pode ser acoplado a um DVD, diz ela, porque os padrões foram consolidados em comum acordo entre os fabricantes de aparelhos eletrônicos à medida que o mercado amadurecia. Todavia, os aparelhos eletroeletrônicos nem sempre funcionam quando acoplados a equipamentos distintos resultantes de novas tecnologias.
Fader não acredita que a sala de estar digital resolva a questão do formato por enquanto. A Microsoft tentará impor o Windows ao seu entretenimento digital; a Apple tentará impor o iTunes e a Sony espera conseguir o mesmo com o PlayStation 3.
Conclusão: de acordo com especialistas da Wharton, a sala de estar digital está apenas ensaiando os seus primeiros passos, portanto deverá haver ainda muitas outras tentativas estratégicas e erros freqüentes.
Fonte: Wharton/Universia
Arnaldo Rabelo
07 fevereiro 2007
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